domingo, 27 de fevereiro de 2011

Esquerda sem estratégia [por Rudá Ricci]

Do Partidão à Crise do Mundo Soviético

Nos anos 1950 e 1960, a esquerda brasileira era hegemonizada pelo PCB, o partidão. Ao lado de uma ala mais esquerdista do PTB, da ala de Francisco Julião envolvido com as Ligas Camponesas, da Ação Popular nascida da JUC (Juventude Universitária Católica) e algumas fluidas organizações relacionadas à Leonel Brizola, o PCB reinava com uma leitura exótica, mas verossímil, sobre o Brasil: carregávamos os resquícios de um mundo feudal. Daí, desmembrava-se toda uma lógica de alianças de classes consideradas “progressistas” que poderiam banir o atraso e instalar um modelo capitalista clássico. Em poucas palavras, esta era a estratégia central: compor uma evolução por etapas. Hoje, sabemos que havia divisões internas no PCB, mas esta era a linha oficial. As outras organizações de esquerda não concordavam com esta estratégia e muitas sugeriam que não era na cidade que residia a energia moral da revolução. A leitura que mais tarde jogaria as ligas camponesas nos braços do castrismo e, mais adiante, do PCdoB, colocava o campo no centro da organização revolucionária. Já a Ação Popular (AP) caminhou por Minas Gerais e Maranhão e desenvolveu os fundamentos do que se denominaria de “trabalho de base”, utilizando rádios e métodos de educação popular para organizar sindicatos. Algumas poucas organizações trotskistas mantinham pouca influência política.

De 1961 ao golpe militar, abriu-se uma vaga de rachas no interior do partidão que se acelerou com o regime militar e após o AI-5. As inúmeras organizações, da POLOP à ALN, da ALN à Ala Vermelha, e tantas outras como PCdoB, MR8, MRT, MEP, VAR-Palmares, VPR, PCBR, havia poucas leituras distintas sobre a realidade brasileira. As divergências se davam sobre a organização urbana foquista ou a estrutura de guerra civil prolongada no campo, se centralizada num comitê central ou se segmentada com focos semi-autônomos, mas pouco diferiam sobre a estratégia: o Brasil vivia uma ditadura que seria expressão da crise do capitalismo, o que transformava as organizações de esquerda em estruturas de propaganda e direção da luta revolucionária para a derrubada do regime militar. O debate sobre o atraso ou desenvolvimento em que o país estaria mergulhado foi quase marginal entre as forças de esquerda, e talvez teve na POLOP uma voz dissonante.

De 1969 a 1974 a esquerda brasileira foi praticamente dizimada. A partir daí, tivemos um longo processo de mea culpa e revisão das leituras sobre o país. O vanguardismo foi a tônica de grande parte das vozes críticas. Parte do PCdoB sugeriu uma maior relação com organizações civis na busca de um trabalho político educacional de massas. Parte das organizações aproximou-se das teses de Gramsci que sugeria a disputa da hegemonia política e cultural, criando hábitos e valores a partir de um discurso que acolhia crenças populares e práticas comunitárias. Paulo Freire retornou à tona e a velha rejeição à igreja esvaneceu.

Pautas mais gerais e populares foram, pouco a pouco, surgindo como elementos de mobilização social, caso da luta pela anistia política, pela defesa da soberania brasileira na Amazônia, contra a carestia, pelas demandas sociais nas periferias das cidades (em especial, pela saúde pública) foram se entrelaçando. Mesmo não aparecendo nos documentos oficiais de muitas organizações de esquerda que se reconstruíam no período final dos anos 1970, era evidente que havia uma inflexão em curso, da clandestinidade á ação democrática à luz do dia, do vanguardismo à organização popular de massas, da pauta centralizada pelas cúpulas políticas às pautas que incomodavam os cidadãos mais pobres nas periferias das cidades ou no chão das fábricas e fazendas. A Teologia da Libertação foi, neste sentido, a expressão maior deste amálgama e revisão. Não que as organizações de esquerda tivessem se infiltrado na igreja católica. Ao contrário: a vitalidade e engajamento de parte da igreja católica abriram espaços e sugeriram sutilmente os rumos a serem tomados. Ainda sem uma leitura clara do que ocorria no Brasil, a esquerda experimentava finalmente a crise do regime militar, ferido pela crise de financiamento externo e aumento das taxas de juros internacionais que tiveram no aumento do preço do barril de petróleo (em 1974 e final dos anos 1970) o veneno que contaminou todo sistema produtivo ocidental.

Enfim, entramos na década de 1980 respirando novos ares políticos em plena crise econômica internacional. A década perdida da nossa economia foi a década do florescimento político do país. A esquerda, que até então vinha se acomodando no interior da única organização partidária legal de oposição, o MDB, revelou suas diferenças aos poucos. PT foi a primeira expressão pública das diferenças, acolhendo uma multiplicidade de organizações clandestinas e semi-clandestinas, envolvendo muitas organizações trotskistas (como Convergência Socialista, Liberdade e Luta, Democracia Socialista), rachas do PCdoB (como a “ala rosa”), parte do espólio da ALN e Ala Vermelha, MEP, MCR e outras. Mais tarde, o PCB e o PCdoB também apareceram no espectro partidário nacional, além do PDT brizolista e várias incorporações ao PMDB (parte do partidão, do PCdoB e MR8 quercista, entre outros). O que alimentava as diferenças? Primeiro, o caráter da democracia brasileira, se uma transição em risco ou um processo irreversível de democratização. Depois, a necessidade de criação de um novo partido operário.

Finalmente, a crítica ao mundo soviético. Em outras palavras, a esquerda se dividia entre cautela e ousadia política (o que a transformava em coadjuvante ou protagonista do sistema partidário vigente). Ou, ainda, entre uma concepção clássica de organização centralizada e hierarquizada de partido (as várias vertentes do partido de vanguarda leninista) e um partido de massas, enraizado na base social e com formas de participação e influência direta do filiado nas decisões capitais do partido. Até que, ao longo dos anos 1990, o PT resolveu trilhar os passos do Partido Trabalhista Inglês e passou a pressionar pela expulsão das organizações não totalmente integradas organicamente (ou disciplinadas), abandonar paulatinamente o projeto socialista e focar a vitória eleitoral como objetivo central. A vitória eleitoral, lembremos, é para esquerda um meio e não um fim. A queda do Muro de Berlim e todo a referência do mundo soviético para grande parte da esquerda internacional parece ter aberto a licença para a realpolitik entre tupiniquins. Mesmo o PT, que nasceu se contrapondo ao mundo soviético, parece ter respirado aliviado e foi paulatinamente abandonando o jargão e as premissas de esquerda, até mesmo as socialistas libertárias.

O projeto de esquerda na virada do século XX

A esquerda existe por um projeto de mudança, de ruptura com a desigualdade social e política. Norberto Bobbio, pouco antes de falecer, sugeriu num pequeno texto provocativo, que a diferença entre esquerda e direita contemporâneas está na ênfase da defesa da busca da igualdade social (esquerda) ou da liberdade individual (direita).

Já sugeri em texto anterior que a pauta da esquerda mundial nos tempos atuais é a democracia deliberativa (mais que a participativa) porque é a crença no coletivo e na espécie humana. É nesta prática de alargamento do processo de tomada de decisão no interior do Estado (a participação, portanto, se torna um mecanismo institucional e não esporádico) que se produz a igualdade formal e por onde as demandas sociais se tornam políticas públicas. A defesa da participação direta do cidadão na gestão pública (e não apenas aquela em que o eleitor elege um representante, o mais competente entre todos), postula que toda humanidade tem inteligência e, portanto, capacidade para governar.

Outro aspecto que compõe a pauta da esquerda mundial é a defesa do desenvolvimento sustentável que, aliás, se articula com o de democracia participativa e com o conceito de condições de reprodução das condições de trabalho. O conceito de desenvolvimento sustentável é oposto ao de progresso, de linha reta para um determinado padrão - normalmente, o padrão europeu ou norte-americano é o utilizado para explicar o que é progresso. Parte do princípio que os homens possuem cultura específica, experiências próprias e que o desenvolvimento precisa respeitar tais peculiaridades. O desenvolvimento, por sua vez, é entendido como integral - pessoal, humano, espiritual, social, econômico, produtivo, tecnológico. A base desses dois princípios (democracia deliberativa e desenvolvimento sustentável) é a promoção humana, contrário do individualismo ou mera proteção social. Na proteção (em políticas públicas), a ação do Estado se limita a garantir a sobrevivência da pessoa. É uma noção liberal, que foi esboçada na virada do século XVII para XVIII. Os liberais acreditavam que os homens são diferentes e que os mais capazes sempre terão uma vida privilegiada. Nessa perspectiva, o papel do Estado seria apenas o de garantir condições para que todos possam competir entre si (garantir saúde, educação e segurança). O restante estaria por conta de cada um, da competição. É daí que nasce a noção de proteção, ou seja, de apenas garantir a sobrevivência individual, mas não a melhoria de vida. A melhoria de vida seria resultado de uma ação exclusivamente individual. O conceito de promoção que partilhamos é outro.

Significa acreditar que ninguém é capaz de se desenvolver por si só e que as condições do passado sempre limitarão o crescimento individual. Assim, uma pessoa, filho de favelados e que é favelado, sempre terá menos chances do que aquele que nasceu em berço abastado e que aprende a ler, tem uma biblioteca à sua disposição (além do cargo de direção garantido na empresa dos pais). O papel do Estado seria de promover (promoção) continuamente a possibilidade humana, tanto para os mais pobres como para os mais ricos. Ninguém pode ter seu potencial limitado. Em outras palavras, o Estado deveria promover, sem limites, o acesso a obras de arte, cursos de pintura, literatura, teatro, tecnologias de ponta, financiamento público para abertura de negócios, educação de ponta, intercâmbio etc. Não há limite ao crescimento da humanidade e o Estado seria um suporte para tal condição.

Finalmente, o internacionalismo. É um conceito coerente com o respeito à espécie humana. O inverso do nacionalismo. Ser nacionalista é defender a diferença abstrata entre os homens. A nação é sempre uma abstração. Raramente é uma escolha coletiva - ocorreu, por exemplo, na criação do Estado de Israel, nas revoluções de libertação na África ou nos movimentos separatistas contemporâneos, como é o caso da ex-Iugoslávia. Nesses casos, a criação de uma nação, como regra, se deu na disputa entre grupos que desejavam governar um território. O internacionalismo revela a crença no mundo sem fronteiras. Na troca de experiências. Na oposição ao racismo e à xenofobia.

Ora, se formos sinceros fica evidente que desde os anos 1990 uma pauta – que não seja esta que indiquei acima – qualquer escapou por entre os dedos da esquerda brasileira. Retornamos aos anos 1960 sem a estratégia – mesmo que equivocada – que existia naquele período.

Esta é uma possível pauta. Mas algo do gênero, ou mesmo oposta a esta agenda, é proposto pela esquerda brasileira nos dias atuais? Não. O que temos é um profundo ressentimento que (ou adesismo) em relação ao lulismo.

Lulismo como idéia-fixa

O lulismo torna-se uma referência quase obrigatória em todos os textos e documentos internos de todo espectro à esquerda do mundo político. Fora desta tábua de salvação (ou de sedição, dependendo da agremiação em questão) resta o mundo do trabalho, mais especificamente, o mundo sindical. Aí parece ainda existir vida que pulsa para as agremiações de esquerda. Mas mesmo neste campo, parece viver um labirinto, cercada pela realpolitik e construção de arenas neocorporativas. Talvez este seja o problema central da falta de estratégia da esquerda brasileira: a sociedade civil não se vê representada nas estruturas clássicas de organização partidária. Na medida em que a esquerda não consegue mais se alojar, representar e conseguir ter canais de comunicação com as ruas, ela deixa de ser a esquerda como historicamente se constituiu. Enquanto teoria, o pensamento de esquerda não tem como centro a manutenção do Estado mas, em nosso país, passou a se limitar a este tema. O fato é que a identidade original da esquerda nunca foi a manutenção do aparelho de Estado. Pelo contrário, era justamente a construção de um projeto que abriria o Estado cada vez mais ao controle da sociedade (ou, para alguns, para o controle de um segmento de classe). Desde a análise sobre a Comuna de Paris, em Marx; passando pelo poder dos sovietes que se tornou slogan na revolução russa; passando pelos estudos do exílio mexicano de Trotsky; pelos estudos sobre conselhos operários de Gramsci, Togliati e os comunistas articulados ao redor do Il Manifesto. Apenas para citar clássicos.

Enfim, talvez exista uma esquerda brasileira não partidarizada, talvez engajada em ONGs, fóruns e redes. Algo novo que ainda não consegue se projetar claramente no espaço público. Mas é uma mera hipótese de análise. O fato é que a esquerda organizada em partidos nunca esteve, em nosso país, tão acabrunhada, tão sem estratégia nítida, tão fechada em guetos.

Rudá Ricci é Sociólogo, Mestre em Ciências Políticas e Doutor em Ciências Sociais. Diretor Geral do Instituto Cultiva e membro da Executiva Nacional do Fórum Brasil do Orçamento (www.forumfbo.org.br). Membro do Observatório Internacional da Democracia Participativa.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

A culpa e o Rebanho [por Ronaldo Braga]

A culpa produz o absurdo do seu oposto e causa impressão de bondade, mas durante séculos a culpa esteve longe das paragens desérticas do interior humano e a plenitude marcava os encontros e a covardia era punida com a morte. Hoje a culpa predomina e os oprimidos que na verdade são covardes mantidos vivos vivem a sensação de serem protegidos, uma vez que por serem covardes eles não podem se proteger. Mas na verdade os oprimidos sabem que isso não é verdade, sabem que eles, os oprimidos, são apenas pretextos para expiação de culpas de cristãos poderosos que se tornam vaqueiros e tangem por pastos urbanos humanos que não aceitam a verdade humana.

Somente a maldade da culpa explica esse martírio, esse fascismo que se tornou a relação entre opressor e oprimido, duas faces do covarde. A culpa engendrada na pequenez do homem ou mulher que a sente e por isso não pode aceitar a realidade e a dureza da vida e buscam formas cruéis de serem bons.

Por que um homem defende outro? Por que um homem não pode matar outro?

A defesa é apenas uma máscara para a própria impotência, expiação menor de menores em estado de “quero morrer heroicamente, mas que pena, sou apenas um covarde”.

O homem – um ser egoísta e que vê crescer em si mesmo toda vaidade da natureza – é antes um ser não natural com um natural desejo pelo poder e pela força, um ser construído, moldável, mas que carrega em si a beleza do mal e quando fraco se torna um não-ser, um completo medroso, mas ao mesmo tempo muito potente na sua obstinada auto-repressão e na infinita capacidade de guardar rancores, de planejar pelas costas e de falar por entre frestas.

Como seria o homem ou a mulher em nosso tempo? Senão homens e mulheres oprimidos por dúvidas, culpas e covardias alimentadas na cruel realidade de assassinarem todo desejo que carregam dentro de si. Que tipo de homem pode ser construído e moldado no tempo de um deus fraco, e que morre para salvar?

A direita e principalmente a esquerda se apoderam da culpa dos covardes senhores e engendra na humanidade a sua maior desgraça que é a construção do homem boi, aquele tangido por vaqueiros que se responsabilizam tanto pela ração como pelas ruminações internas e externas do próprio homem, fazendo do covarde o ideal da vida e do forte um terrível bandido que precisa antes de mais nada serem banidos da terra. Mas ilusão pregada, ilusão perdida, e o vaqueiro dono do pasto determina tudo na vida, mas o covarde trás em si a pulsação pela traição, pela mesquinhez e ele, o covarde que se auto proclama bom, precisa de sangue para expiar a sua própria covardia.

Relação construída na mentira e negação, tanto a direita quanto e principalmente a esquerda, se tornam cruéis e desumanos, formando grupos sangrentos e covardes e eliminado o indivíduo pleno e independente, pois o temor do vaqueiro é a individualização humana, aquele que se sabe forte prefere a morte que o pasto e a ração, enquanto o fraco clama por justiça e por finalmente calar a vida e assim ele, o fraco, ser poderoso.

Sem a culpa os vaqueiros seriam relegados e desnecessários, como foram durante séculos na vida do ser humano na terra. Era a força e o fraco sem juízes, sem vaqueiros sem apelações, sem culpa e nem perdão, apenas luta e que ganhe o mais forte.

Hoje a multiplicação de fracos por toda parte tornou o homem um inseto covarde e inútil, comandado por outros insetos que por sua vez se utilizam dos filhos dos covardes bois e os vestem fardas e armas e autorização para matarem apenas em nome do Estado ou da companhia.

A maldade da bondade é o interior de nossa cultura, não aceitar a força natural do humano é a construção da substituição do homem pelo boi e do boi pelo homem, é a eliminação de ações gigantes e belas que o passado assistiu e admirou e a criação do cliente, imbecil feliz e comandado por ideias de outros e completamente alheio a si mesmo.

O que pensa uma pessoa? Hoje tranquilamente apenas ser escravo de algum grupo poderoso de covardes e receber um salário e ordens e ser chamado de cidadão.

É, a vida humana se acabou, temos agora o mundo formado por melancólicos fantasmas que se vigiam, afinal viver é somente uma mera lembrança de um passado que não volta mais, enquanto isso, vaqueiros e massa se amam entre guerras, fomes, fascismos e sempre falando e ouvindo frases e palavras belas e confortantes.

A felicidade guardada no cofre é agora contada em cédulas ou assassinatos.

O fantasma anda e é o desejo oculto.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Patrulhas ideológicas e patrulhas pop. [por Arnaldo Jabor]

Meu filme A Suprema Felicidade está sendo aplaudido em cinemas cheios. Pensei: “Oba! O filme é legal; estão gostando!” Uma espectadora me escreveu: “Saí do cinema lotado de pessoas que aplaudiam. Parecia que uma seca tinha acabado. Os que se falavam depois do filme, brindavam com olhos úmidos e a alma encharcada na alegria da dor comum a todos, serenamente revelada.”


Fiquei feliz com o email, mas logo vi que estava errado… Descobri que sou um mero “mané” que se ilude. São outros os que sabem a verdade. Os críticos da Folha e da Vejinha decretaram que o filme não merece nem uma análise; apenas frases de pichação, breves xingamentos. Eles são taxativos e cruéis como ativos militantes de novas patrulhas “contemporâneas”: “Ele não é mais cineasta” ou “a narração é que estraga…” ou ainda “muitos temas, sem foco” e ainda “acaba de repente”. Só isso?


É. O filme tem críticas ótimas com bonequinho batendo palma no O Globo e quatro estrelas no Estadão, mas, na minha trêmula insegurança, só penso nos quatro que trataram o filme como um objeto descartável, um lixo ridículo. E mais: criticam-me mais que o filme. Por que essa raiva? Por quê? Será que eles estão certos? Será que as 180 mil pessoas que já assistiram ao filme em 13 dias, e que fazem a renda crescer no cinema com um boca a boca fervoroso, são um bando de idiotas?


Resolvi entender isso. Pensei, pensei, não só pela vaidade ferida, claro, mas também para denunciar a estupidez de cadernos culturais que viraram meros releases de produtos de massa. Cresce no País uma cultura da incultura, a profundidade do superficial, a rapidez do julgamento, num mundo feito de fugazes emails, celulares tocando, filmes com imagens que não podem ter mais de quatro segundos, porrada, corrida, sem saída, até sem “roteiro”, essa coisa antiga do tempo em que os homens (e não robôs e transformers) se relacionavam.


Está fora de moda um filme para ser visto, refletido, com choro, risos, vida… Cinema agora é para manipular os espectadores, que são o videogame da indústria. O desejo dos produtores é justamente apagar o drama humano dentro de nossas cabeças. A ação na tela é incessante, o conflito é permanente, de modo a impedir o espectador de ver seus conflitos internos.


Acontece, patrulheiros pop, que A Suprema Felicidade foi feito justamente contra essa tendência – quero que os espectadores se sintam dentro do filme e não que sejam levados por porradas, som dolby e homens explodindo.


Eu sei que vocês foram modificados geneticamente por décadas de videoclipes, eu compreendo que vocês achem o Michel Gondry o novo Goddard e que o flash-back foi inventado pelo Tarantino. Imagino vosso tremor na hora da entrevista de emprego, com o diretor do jornal perguntando: “Conhece literatura, política, antropologia?” “Não, senhor…” “OK… Secretário, bota ele na crítica de cinema…”


Há em vocês uma esperteza ambiciosa por trás de tanta brevidade implacável – é duro passar a vida botando bolinha preta no Piranha. O cara precisa criar eventos que o promovam.


Eis que, de repente, aquele sujeito que fala na TV, escreve em 20 jornais, fala no rádio há 15 anos, resolveu fazer seu nono filme.


Vocês gritam: “Vamos quebrar a espinha dele!”


Compreendo que isso dá prestígio; é um upgrading. O sujeito entra na redação de testa alta e lábio trêmulo: “Esculachei a besta do Jabor!” E é olhado com cálida admiração.


Ato de violência. Aí, percebi que não apenas a patrulha pop pautou seus críticos. Lembrei da devastadora crítica de Eduardo Escorel na revista Piauí – (não confundir com Lauro Escorel, o grande artista que fotografou o filme). Lembro mesmo que corri à piauí com a esperança de aprender teoria com o velho autor de remotos filmes, como a história sinistra de um esquartejador e a adaptação dialética do Cavalinho Azul, de Maria Clara Machado. Dele eu esperava opiniões cultas, conspícuas frases sobre Bergman, Fellini. Eu esperava encontrar André Bazin e dei de cara com Andrei Zhdanov, o supremo censor de Joseph Stalin (olhem no Google, meninos…)


Mas, mesmo assim, esquartejado, tentei entendê-lo. E tive a revelação, vi a luz!


Eduardo tinha uma missão política, senhores, iluminista mesmo: ele quis salvar o público das mensagens reacionárias que devo ter embutido no filme. Por isso, ele correu a Alphaville, para ver o filme quentinho, ainda no laboratório. Ele correu antes para avisar o povo: “Não vá!… Fuja do demônio neoliberal que fez um filme de época sem mostrar Getúlio ou a luta de classes.”


Ele deve ter zelosamente pensado: “Vou pautar também os jovens tenentes das novas “patrulhas pop”, porque eu sou egresso das velhas patrulhas ideológicas descobertas por Cacá Diegues e tenho esta missão.”


E conseguiu; parabéns, doce Zhdanov com seu lento sorriso superior. Foi um alívio. A sociedade estava salva.


Mesmo assim eu ainda entendo o homem. Sei que grandes frustrações na vida se compensam por elusivas fantasias de grandeza. Sei que a onipotência não realizada, o narcisismo que parou no meio provocam ódio e entendo que ele tenha buscado, digamos, “profissionalizar” seu rancor. Assim, ele descolou esse “bico” para aliviar sua dor interna. Deve ter pensado: “Boa ideia… serei implacável contra todos que ousam fazer filmes corrompidos pelo sucesso e pelo público enganado.”


Confesso que admiro sua integridade de não poupar nem amigos nem parentes.


Mas, aí… esbarrei com a frase: “Jabor sempre pareceu mais um “diletante” que um cineasta profissional.” Aí, não. Depois de ter trabalhado 30 anos em cinema, fazendo nove filmes, ouvir isso não dá. “Diletante” é você, cara, que fez dois ou três filmes medíocres que sumiram da história de nosso cinema.


E, no final, outro insulto, quando ele diz que, vendo esse filme, ele não tem mais dúvidas de quem sou eu…


Respondo: Se você pudesse saber quem eu sou, você não seria o que é.


E mais, ridículo censor do trabalho alheio: “A dignidade severa é o último refúgio dos fracassados.” É só.



quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Imagem fotográfica e história [por Boris Kossoy]

Qualquer que seja o tema representado numa fotografia é a lembrança que ela traz de uma época desaparecida o aspecto simbólico sempre recorrente. É a fotografia, dentre as demais fontes de informação histórica não convencionais, uma das que têm atraído o interesse de um número maior de pesquisadores; um eficaz instrumento de descoberta e análise dos cenários e fatos do passado.

No trabalho histórico a imagem não vale por mil palavras. A gênese e a história dos documentos fotográficos, assim como os fragmentos do mundo visível passado que esses mesmos documentos preservam congelados, requerem, para sua devida compreensão, uma ampla gama de informações advindas de diferentes áreas do conhecimento.

A fotografia se refere a um micro-aspecto do mundo, a uma determinada realidade que ela registra. No entanto, queremos sempre saber mais a respeito daquilo que se acha gravado na fotografia. Porque temos a consciência que o que vemos se conecta a inúmeros fatos sobre os quais nada sabemos; e que podem contextualizar a imagem: um registro de aparências, composto de múltiplas realidades.

Quaisquer que sejam os conteúdos das imagens devemos considerá-las sempre como fontes históricas de abrangência multidisciplinar, decisivas para seu emprego nas diferentes vertentes de investigação histórica. As imagens fotográficas, entretanto, são apenas o ponto de partida, a pista para tentarmos desvendar o passado. Elas nos mostram um fragmento selecionado da aparência das coisas, das pessoas, dos fatos, tal como foram esteticamente congelados num dado momento de sua existência/ocorrência.

A realidade da fotografia não corresponde (necessariamente) à verdade histórica, apenas ao registro expressivo da aparência. Seu potencial informativo poderá ser alcançado na medida em que esses fragmentos forem contextualizados na trama histórica em seus múltiplos desdobramentos sociais, políticos, culturais, que circunscreveram no tempo e no espaço o ato da tomada do registro. Caso contrário essas imagens permanecerão estagnadas em seu silêncio: fragmentos desconectados da memória.

Assim como as demais fontes de informação históricas, as fotografias não podem ser aceitas imediatamente como espelhos fiéis dos fatos. A imagem de qualquer objeto ou situação documentada pode ser dramatizada ou estetizada, de acordo com a ênfase (intenção) pretendida pelo fotógrafo.

A manipulação é inerente à construção da imagem fotográfica. A foto é sempre manipulada posto que se trata de uma representação segundo um filtro cultural são as interpretações culturais, estéticas/ideológicas e de outras naturezas que se acham codificadas nas imagens.

A decifração das imagens vai além das aparências. Sua realidade interior deve ser desvendada segundo metodologias adequadas de análise e interpretação, caso contrário permaneceremos na superfície das imagens, iconografias ilustrativas sem densidade histórica.


Boris Kossoy é professor-titular do depto. de Jornalismo e Editoração da ECA/USP, pesquisador, historiador e autor de Realidades e ficções na trama fotográfica (Ateliê Editorial, 2001) e Dicionário histórico fotográfico brasileiro(Instituto Moreira Salles, 2002), entre outros.


quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

As carícias e o Iluminado [por José Ângelo Gaiarsa]


Chega de viver entre o medo e a Raiva! Se não aprendermos a viver de outro modo, poderemos acabar com a nossa espécie.


É preciso começar a trocar carícias, a proporcionar prazer, a fazer com o outro todas as coisas boas que a gente tem vontade de fazer e não faz, porque "não fica bem" mostrar bons sentimentos! No nosso mundo negociante e competitivo, mostrar amor é... um mau negócio. O outro vai aproveitar, explorar, cobrar... Chega de negociar com sentimentos e sensações. Negócio é de coisas e de dinheiro- e pronto! O pesquisador B. Skinner mostrou por A mais B que só são estáveis os condicionamentos recompensados; aqueles baseado na dor precisam ser reforçados sempre senão desaparecem. Vamos nos reforçar positivamente. É o jeito - o único jeito - de começarmos um novo tipo de convívio social, uma nova estrutura, um mundo melhor.


Freud ajudou a atrapalhar mostrando o quanto nós escondemos o que há de ruim; mas é fácil ver que nós escondemos também tudo que é bom em nós, a ternura, o encantamento, o agrado em ver, em acariciar, em cooperar, a gentileza, a alegria, o romantismo, a poesia, sobretudo o brincar - com o outro. Tudo tem que ser sério, respeitável, comedido - fúnebre, chato, restritivo, contido...


Há mais pontos sensíveis em nosso corpo do que as estrelas num céu invernal.


"Desejo", do latim de-sid-erio, provém da raiz "sid", da língua zenda, significando ESTRELA, como se vê em sideral, relativo às estrelas.


Seguir o desejo é seguir a estrela - estar orientado, saber para onde vai, conhecer a direção...


"Gente é para brilhar", diz mestre Caetano.


Gente é, demonstravelmente, a maior maravilha, o maior playground e a mais complexa máquina neuromecânica do Universo conhecido. Diz o Psicanalista que todos nós sofremos de mania de grandeza, de onipotência.


A mim parece que sofremos de mania de pequenez.


Qual o homem que se assume em toda a sua grandeza natural? "Quem sou eu primo?" Em vez de admirar, nós invejamos - por não termos coragem de fazer o que a nossa estrela determina.


O Medo - eis o inimigo. O medo, principalmente do outro, que observa atentamente tudo o que fazemos - sempre pronto a criticar, a condenar, a pôr restrições - porque fazemos diferente dele.


Só por isso. Nossa diferença diz para ele que sua mesmice não é necessária. Que ele também pode tentar se livre - seguindo sua estrela. Que sua prisão não tem paredes de pedra, nem correntes de ferro. Como a de Branca de Neve, sua prisão é de cristal - invisível. Só existe na sua cabeça. Mas sua cabeça contém - é preciso que se diga - todos os outros que, de dentro dele, o observam, criticam, comentam - às vezes até elogiam!


Por que vivemos fazendo isso uns com os outros - vigiando-nos e obrigando-nos - todos contra todos - a ficar bonzinhos dentro das regrinhas do bem-comportado - pequenos, pequenos. Sofremos de megalomania porque no palco social obrigamo-nos a ser, todos, anões. Ai de quem se sobressai, fazendo de repente o que lhe deu na cabeça. Fogueira para ele! Ou você pensa que a fogueira só existiu na Idade Média?


Nós nos obrigamos a ser - todos - pequenos, insignificantes, inaparentes, "normais"- normopatas diz melhor; oligopatas - apesar do grego- melhor ainda. Oligotímicos - sentimentos pequenos - é o ideal...

Quem é o iluminado?


No seu tempo, é sempre um louco delirante que faz tudo diferente de todos. Ele sofre, principalmente, de um alto senso de dignidade humana - o que o torna insuportável para todos os próximos, que são indignos.


Ele sofre, depois, de uma completa cegueira em relação à "realidade"(convencional), que ele não respeita nem um pouco. Ama desbragadamente - o sem vergonha. Comporta-se como se as pessoas merecessem confiança, como se todos fossem bons, como se toda criatura fosse amável, linda, admirável.

Assim ele vai deixando um rastro de luz por onde quer que passe. Porque se encanta, porque se apaixona, porque abraça com calor e com amor, porque sorri e é feliz.


Como pode, esse louco? Como pode estar - e viver! - sempre tão fora da realidade - que é sombria, ameaçadora; como ignorar que os outros - sempre os outros - são desconfiados, desonestos, mesquinhos, exploradores, prepotentes, fingidos, traiçoeiros, hipócritas...


Ah! Os outros... (fossem todos como eu, tão bem-comportados, tão educados, tão finos de sentimentos...) O que não se compreende é como há tanta maldade num mundo feito somente de gente que se considera tão boa. Deveras, não se compreende.


Menos ainda se compreende que de tantas famílias perfeitas - a família de cada um é sempre ótima - acabe acontecendo um mundo tão infernalmente péssimo.


Ah! Os outros... Se eles não fossem tão maus - como seria bom...


Proponho um tema para meditação profunda; é a lição mais fundamental de toda a Psicologia Dinâmica:


Só sabemos fazer o que foi feito conosco.
Só conseguimos tratar bem os demais se fomos bem tratados.
Só sabemos nos tratar bem se fomos bem tratados.
Se só fomos ignorados, só sabemos ignorar.
Se só fomos odiados, só sabemos odiar.
Se fomos maltratados, só sabemos maltratar.
Não há como fugir desta engrenagem de aço: ninguém é feliz sozinho.
Ou o mundo melhora para todos ou ele acaba.
Amar o próximo não é mais idealismo "místico" de alguns.
Ou aprendemos a nos acariciar ou liquidaremos com a nossa espécie.
Ou aprendemos a nos tratar bem - a nos acariciar - ou nos destruiremos.
Carícias - a própria palavra é bonita.
Carícias... Olhar de encantamento descobrindo a divindade do outro - meu espelho!

Carícias... Envolvência (quem não se envolve não se desenvolve...), ondulações, admiração, felicidade, alegria em nós - eu e os outros.


Energia poderosa na ação comum, na co-operação. Na co-munhão. Só a União faz a força - sinto muito, mas as verdades banais de todos os tempos são verdadeiras - e seria bom se a gente tentasse FAZER o que essas verdades nos sugerem, em vez de críticos e céticos e pessimistas, encolhermos os ombros e deixarmos que a espécie continue, cega, caminhando em velocidade uniformemente acelerada para o Buraco Negro da aniquilação.


Nunca se pôde dizer, como hoje: ou nos salvamos - todos juntos - ou nos danamos - todos juntos.



José Ângelo Gaiarsa nasceu em 1920 na cidade de Santo André-SP, formou-se em medicina pela USP e, especializado em Psiquiatria, foi o introdutor das técnicas corporais em psicoterapia no Brasil.

Durante dez anos (de 1983 a 1993), Gaiarsa apresentou o quadro Quebra-Cabeça do Programa Dia-a-Dia, transmitido pela Rede Bandeirantes, em que analisava problemas emocionais contando sempre com a participação dos espectadores.

O médico ainda era especialista em comunicação não verbal. Sua produções em Psicoterapia tem contribuido para a produção científica e para a socialização dos conhecimentos científicos sobre temas como família, sexualidade e relacionamentos amorosos.

Faleceu na capital paulista no dia 16 de outubro de 2010, aos 90 anos de idade, em decorrência de causas naturais em sua residência.



terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Da narrativa cinematográfica [por André Setaro]


A construção de uma narrativa cinematografia obedece a diversos critérios assim como um projeto arquitetônico corresponde a determinadas opções. Há uma construção narrativa que se pode considerar simples e outra que se desenha como complexa. Dois tipos de estruturas, portanto, mas que se deve ter em conta e ressaltar que a simplicidade ou a complexidade são noções exclusivamente inerentes ao como do discurso e não à sua coisa. Isto quer dizer: pode haver histórias intrincadíssimas mas de estrutura simples, elementar, e, pelo contrário histórias lineares, com começo, meio e fim e progressão dramática tradicional mas que se tornam intrincadas por uma disposição particular dos segmentos narrativos.Dentre as narrativas de estruturas simples estão: a linear, a binária e a circular.

Narrativa linear. Percorrida por um único fio condutor que se desenvolve de maneira seqüencial do princípio ao fim sem complicações ou desvios do caminho traçado. A narrativa de estrutura linear é a de mais fácil leitura e é concebida de modo a respeitar todas as fases do desenvolvimento dramático tradicional. O esquema que se obedece é aproximadamente o seguinte: a) introdução ambiental; b) apresentação das personagens; c) nascimento do conflito; d) conseqüências do conflito; e) golpe de teatro resolutório. Este esquema da narrativa linear repete ao pé da letra o que era a estrutura base do romance psicológico do século XIX. Incluem-se nesse tipo de narrativa aquela nas quais o elemento poético e metafórico é reduzido ao mínimo e os motivos de interesse residem exclusivamente na fábula (story), excetuando-se os eventuais casos de erosão dentro do referido esquema - que se constituem uma exceção à regra.

Narrativa binária. Este tipo de narrativa é percorrido por dois fios condutores a reger a ação como só acontece nos casos de narrativas paralelas baseada na coexistência de duas ações que podem entrecruzar-se ou manter-se distintas. Garantia certa de tensão dramática, a binária é empregada em fitas de ação - thrillers, westerns, etc - porque valoriza o paralelismo e o simultaneismo, fornecendo, assim, amplas possibilidades de impacto. Exemplo clássico da narrativa binária está em David Wark Griffith (Intolerância, 1916, O lírio partido, 1918, Broken blossoms no original). A linguagem cinematográfica tomou impulso com a descoberta da ação paralela e da inserção de um plano de detalhe no plano de conjunto.

Narrativa circular. Este tipo de narrativa tem lugar quando o final reencontra o início de tal modo que o arco narrativo acaba por formar um círculo fechado. É menos frequente e mais ligada a intenções poéticas precisas com um propósito de oferecer uma significação da natureza insolúvel do conflito de partida e denota a desconfiança em qualquer tentativa para superar a contradição assumida como motor dramático do filme. A significação implícita a este gênero de escolha estrutural poderia ser: "as mesmas coisas repetem-se". Em A faca na água (Noz W Wodzie, Polônia, 62), o primeiro longa metragem de Roman Polansky, assim como também em O fantasma da liberdade (Le fantôme de la liberté, 74) de Luis Buñuel, e Estranho Acidente (Accident, 68), de Joseph Losey, para ficar em três exemplos, as coisas que se observam no início voltam a surgir no final, a despeito das tentativas registradas pela narrativa para se libertar delas e da sua influencia nefasta. A construção das obras citadas obedece e exprime a visão do mundo de seus autores do que, propriamente, à matéria da fábula, que pode se apresentar tranquila e jocosa e destituída de relevância maior.

Dentre as narrativas de estrutura complexa estão: a estrutura de inserção, a estrutura fragmentada e a estrutura polifônica.

Narrativa de inserção. Consiste numa justaposição de planos pertencentes a ordens espaciais ou temporais diferentes cujo objetivo é gerar uma espécie de representação simultânea de acontecimentos subtraídos a qualquer relação de causalidade. Os segmentos narrativos individuais interatuam entre si, produzindo, com isso, uma complicação ao nível dos significantes que potencializa o sentido global do discurso. A contínua intervenção do flash-back pode provocar um entrelaçamento temporal que esvazia a noção do tempo cronológico em favor do conceito de duração. Por outro lado, as frequentes deslocações espaciais conferem aos lugares uma unidade de caráter psicológico mas não de caráter geográfico. Na narrativa de inserção, a realidade é vista de modo mediatizado, isto é, a realidade é refletida pela consciência do protagonista ou pela do realizador omnisciente. Seguem esta narrativa de inserção filmes como 8 ½ (Otto e mezzo, 64), de Federico Fellini, A guerra acabou (La guerre est finie, 66),Providence, entre outros trabalhos de Alain Resnais, Morangos Silvestres (Smulstronstallet, 57) de Ingmar Bergman, etc. Nestes exemplos, o receptor/espectador é posto diante de um desenvolvimento narrativo que não é lógico mas puramente mental: o velho Professor Isaac contempla a própria infância (Bergman), o cineasta Guido (Marcello Mastroianni) no cemitério conversa com seus pais já falecidos (Fellini), a projeção do desejo de um escritor moribundo (John Gielgud) imaginando situações (Resnais). O desenvolvimento puramente mental determina, por sua vez, um jogo de associações visuais e emotivas que cria um universo fictício exclusivamente psicológico.

Narrativa fragmentada. Estrutura-se pela acumulação desorganizada de materiais de proveniência diversa, segundo um procedimento análogo ao que, em pintura, é conhecida pelo nome de colagem, A unidade, aqui, não é dado pela presença de um fio narrativo reconhecível, porém pelo ótica que preside à seleção e representação dos fragmentos da realidade. Se, neste caso, da narrativa fragmentária, a intenção oratória do cineasta prevalece sobre a fabulatória, mais acertado seria considerar o filme como um ensaio do que um filme como narrativa. A expectativa de fábulas, no entanto, encontra-se presente no homem desde seus primórdios e o cinema, portanto, desde seu nascedouro possui uma irresistível vocação narrativa. Poder-se-ia, então, ainda que esta irrefreável expectativa do receptor diante de um filme, falar de um cinema-ensaio ao lado de um cinema-narrativo. O exemplo de, novamente Alain Resnais, Meu tio da América (Mon oncle d'Amerique) vem a propósito, assim como Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela (Deux ou trois choses que je sais d'elle, 66) de Jean-Luc Godard - um minitratado sobre a reificação que ameaça o homem na sociedade de consumo, La hora de los hornos (68), de Fernando Solanas - obra nascida como ato político que utiliza documentos, entrevistas, cenas documentais e trechos com o objetivo de proporcionar a tomada de consciência revolucionária por parte do espectador.

Narrativa polifônica. Estrutura-se pelo número de ações apresentadas que confere uma feição coral à narrativa, impedindo-a de afirmar-se de um ponto de vista que não seja o do realizador-narrador. Os acontecimentos que se entrelaçam são múltiplos, dando a impressão de um afresco, que se forma pelas situações captadas quase a vol d'oiseau. Utilizando-se desse tipo de narrativa complexa, o cineasta capta de maneira sensível, se capacidade houver, o clima social de uma determinada época, como fez Robert Altman em Nashville (1975). Neste filme, vinte e quatro histórias se entrecruzam para compor um mosaico revelador da realidade dos Estados Unidos durante a década de 70. Outro exemplo do mesmo Altman é Short cuts. (Short cuts, EUA, 91).As estruturas examinadas são todas elas do tipo fechado, segundo as coordenadas estabelecidas por René Caillois.

Porque, assim fechadas, estas estruturas servem de suporte à narrativas concluídas do ponto de vista de seu desenvolvimento, não importando o seu significado poético. Existem, no entanto, casos de estruturas abertas, nas quais a conclusão do discurso é deixada em suspenso ou então prolongada para além do filme. O que caracteriza a obra cinematográfica como um trabalho em devir, um filme que busca ainda o seu desfecho ou, então, como um texto que se oferece à meditação do espectador. Em Apocalypse now (1978), de Francis Ford Coppola, o cineasta apresenta três finais todos igualmente legítimos e solidários com o contexto narrativo. Já em Dalla nube nulla ressitenza (81), de Jean-Marie Straub, formado por blocos de sequências fixas, a solução final é deixada ao subsequente trabalho de reflexão do espectador/receptor. Trata-se de uma obra que faz uma reflexão, por meio de representações dialogais, sobre a passagem da idade feliz do Mito para a idade infeliz da História.O caráter aberto da narração, todavia, em nada desfalca a contextualidade orgânica do discurso, contextualidade que se mantém íntegra apesar da suspensão da fábula. A solidariedade estrutural, ressalte-se, constitui a conditio sine qua non de qualquer discurso cinematográfico que pretenda considerar-se artístico.

André Setaro é crítico de cinema e professor de comunicação da Universidade Federal da Bahia (Ufba).