domingo, 13 de novembro de 2011

Sobre livros e leitura [Arthur Schopenhauer]

A ignorância só degrada a pessoa quando é acompanhada de riqueza. O pobre é limitado por sua pobreza e por suas necessidades; no seu caso o trabalho substitui o saber e ocupa seus pensamentos. Por outro lado, os ricos que são ignorantes vivem apenas para seus prazeres e se parecem ao gado, como podemos notar diariamente. Isto é ainda mais censurável porque não usaram a riqueza e o ócio para aquilo que lhes empresta o mais alto valor.

Quando lemos, outra pessoa pensa por nós: só repetimos seu processo mental. Trata-se de um caso semelhante ao do aluno que, ao aprender a escrever, traça com a pena as linhas que o professor fez com o lápis. Portanto, o trabalho de pensar nos é, em grande parte, negado quando lemos. Daí o alívio que sentimos quando passamos da ocupação com nossos próprios pensamentos à leitura. Durante a leitura nossa cabeça é apenas o campo de batalha de pensamentos alheios. Quando estes, finalmente, se retiram, que resta? Daí se segue que aquele que lê muito e quase o dia inteiro, e que nos intervalos se entretém com passatempos triviais, perde, paulatinamente, a capacidade de pensar por conta própria, como quem sempre anda a cavalo acaba esquecendo como se anda a pé. Este, no entanto, é o caso de muitos eruditos: leram até ficar estúpidos. Porque a leitura contínua, retomada a todo instante, paralisa o espírito ainda mais que um trabalho manual contínuo, já que neste ainda é possível estar absorto nos próprios pensamentos. Assim como uma mola acaba perdendo sua elasticidade pelo peso contínuo de um corpo estranho, o mesmo acontece com o espírito pela imposição ininterrupta de pensamentos alheios.

E assim como o estômago se estraga pelo excesso de alimentação e, desta maneira prejudica o corpo todo, do mesmo modo pode-se também, por excesso de alimentação do espírito, abarrotá-lo e sufocá-lo. Porque quanto mais lemos menos rastro deixa no espírito o que lemos: é como um quadro negro, no qual muitas coisas foram escritas umas sobre as outras. Assim, não se chega à ruminação: e só com ela é que nos apropriamos do que lemos, da mesma forma que a comida não nos nutre pelo comer, mas pela digestão. Se lemos continuamente sem pensar depois no que foi lido, a coisa não se enraíza e a maioria se perde. Em geral não acontece com a alimentação do espírito outra coisa que com a do corpo: nem a quinquagésima parte do que se come é assimilado, o resto desaparece pela evaporação, pela respiração ou de outro modo.

Acrescente-se a tudo isso que os pensamentos postos no papel nada mais são que pegadas de um caminhante na areia: vemos o caminho que percorreu, mas para sabermos o que ele viu nesse caminho, precisamos usar nossos próprios olhos.

Nenhuma qualidade literária como, por exemplo, força de persuasão, riqueza de imagens, dom de comparação, audácia, ou amargor, ou brevidade, ou graça, ou leveza de expressão, ou ainda agudeza, contrastes surpreendentes, laconismo, ingenuidade etc., podemos adquirir lendo autores que as possuam. O que podemos é, através deles, despertar em nós tais qualidades no caso de já as possuirmos como inclinação, quer dizer em potentia, trazê-las à consciência, podemos ver tudo o que se pode fazer com elas, podemos ser fortalecidos nessa inclinação, na coragem de usá-las, podemos julgar o funcionamento de seu uso pelos exemplos e, assim, podemos aprender seu uso correto; em todo caso é só depois disto que as possuímos também em actu.

Esta é a única maneira de a leitura educar-nos para escrever, na medida em que nos ensina o uso que podemos fazer de nossos dons naturais; sempre na suposição de que esses dons existam. Sem eles, no entanto, não aprendemos com a leitura nada além de um maneirismo frio, morto, e nos tornamos imitadores superficiais.

Os inspetores de saúde pública deveriam, no interesse de nossos olhos, cuidar de que houvesse um mínimo fixo, a não ser desobedecido, para o tamanho das letras impressas. (Quando eu estava em Veneza em 1818, na época em que ainda se fabricavam as verdadeiras correntes venezianas, um ourives me disse que aqueles que faziam a catena fina ficavam cegos aos 30 anos.)

Assim como as camadas de terra conservam em filas os seres vivos de épocas passadas, as prateleiras das bibliotecas também conservam em filas os erros do passado e suas explicações que, como aqueles no seu tempo, eram muito vivos e faziam muito barulho, mas hoje estão ali rígidos e petrificados, e só o paleontólogo literário os contempla.

Xerxes, segundo Heródoto, chorou ao mirar seu inumerável exército porque pensou que de todos aqueles homens nenhum estaria vivo cem anos depois: assim, quem não choraria ao ver um grosso catálogo de feira de livro, ao pensar que de todos esses livros nenhum estará vivo em menos de dez anos?

Como as pessoas leem sempre em vez do melhor de todos os tempos, o mais recente, os autores permanecem na esfera estreita das ideias circulantes, e o século se enterra cada vez mais profundamente nos seus próprios excrementos.

É por isso que, no que se refere a nossas leituras, a arte de não ler é sumamente importante. Esta arte consiste em nem sequer folhear o que ocupa o grande público, o tempo todo, como panfletos políticos ou literários, romances, poemas, etc., que fazem tanto barulho durante algum tempo, atingindo mesmo várias edições no seu primeiro e último ano de vida: deve-se pensar, ao contrário, que quem escreve para palhaços sempre encontra um grande público e consagre-se o tempo sempre muito reduzido de leitura unicamente às obras dos grandes espíritos de todos os tempos e de todos os países, que se destacam do resto da humanidade e que a voz da fama identifica. Só eles educam e ensinam realmente.

Os ruins nunca lemos de menos e os bons nunca relemos demais. Os livros ruins são veneno intelectual: eles estragam o espírito. Para ler o bom uma condição é não ler o ruim: porque a vida é curta e o tempo e a energia escassos.



Arthur Schopenhauer (Danzig, 22 de Fevereiro de 1788 — Frankfurt, 21 de Setembro de 1860) foi um filósofo alemão do século XIX. Seu pensamento é caracterizado por não se encaixar em nenhum dos grandes sistemas de sua época.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Política da solidão [Marcia Tiburi]

Edward Hopper

Algo vai muito mal com a autocompreensão do ser humano sob a crença de que existe um padrão normal dos afetos que calibraria o todo da experiência emocional humana. A crença na normalidade confirma apenas que vivemos mergulhados na incomunicabilidade. Os sentimentos humanos são nebulosos e confusos, mas não são expressos senão por meio de atos desesperados que falam por si mesmos.

Se a norma fosse estabelecida pelo que há de mais comum, teríamos de voltar ao paradoxo de Bacamarte: o anormal é normal, o normal é anormal.

O fenômeno contemporâneo da psiquiatrização da vida nasceu como tentativa de eliminar a estranheza humana. Hoje ele sustenta a indústria cultural da saúde, que se serve do sofrimento humano como a hiena se serve da carniça.

Para os fins do logro capitalista já não basta aproveitar a desgraça do outro, também se pode ajudar a incrementar a produção do infortúnio usando a arma do discurso. A moral une-se à ciência nessas horas e quem paga o preço é o indivíduo humano, do qual se extirpa a capacidade de pensar sobre sua própria vida.

Se a indústria farmacêutica depende da evolução das drogas e dos remédios, depende também da existência de doenças. Criar um remédio pode implicar a criação da doença.

Assim é que uma das mais fundamentais experiências humanas na mira dos sacerdotes da moral que propagam a psiquiatrização da vida é, hoje, a solidão. A banalidade da proposta não é pouco violenta.

Em pesquisa recentemente divulgada, um médico norte-americano definiu a solidão não apenas como doença, mas como epidemia. Tratou-a como uma tendência contrária à evolução. Definida como um erro da “natureza humana”, a solidão passa a ser vista fora de sua dimensão social e histórica. Como doença, ela seria a causa do sofrimento e não o efeito da perda de sentido da convivência entre as pessoas. Em última instância, daquilo que seria o significado mais próprio da política como universo da integração entre indivíduos e comunidades.

Em um mundo em que a política foi destruída pelo poder transformado em violência, a solidão é o sintoma do medo do outro que ameaça o indivíduo.

Diz-se indivíduo daquele que não pode ser dividido, que é inteiro. Podemos dizer que a solidão é constitutiva de si no mais simples sentido metafísico. Mas há a solidão como um fato que diz respeito à vida vivida fora das relações. É essa solidão que deve ser inscrita na filosofia política como afeto político.

Mas não há nada de anormal em um indivíduo viver só. A solidão da qual muitos se queixam hoje como um desprazer pode ser para outros tantos um prazer. Viver em comunidade não faz sentido para todo mundo e isso não leva necessariamente à conclusão de antissociabilidade da qual o indivíduo seria a vítima ou o culpado.

A solidão nas cidades grandes é muito mais um sinal da precariedade do sentido da comunidade e da convivência, é mais um problema sociocultural do que de escolha individual.

Selva de pedra

Certamente ela reflete a impossibilidade de retornar às florestas, como um dia fez Henry Thoreau. As florestas estão em extinção, assim como, curiosamente, a ideia de humanidade. Resta fugir para a moderna caverna na selva de pedra – sem querer reeditar lugares-comuns – que é a casa de cada um.

A solidão é, assim, a categoria política que expressa a nostalgia de uma vivência de si mesmo. Ela é, por isso, a tentativa de preservar a subjetividade e a intimidade consigo mesmo que não tem lugar no contexto de relações sociais transformadas em mercadorias baratas.

A sociedade da antipolítica precisa tratar a solidão como uma pena e um mal-estar quando não consegue olhar para a miséria da vez: o fetiche da hiperconectividade, que ilude que não somos sozinhos.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

O teto de vidro da educação brasileira [Simon Schwartzman]

Todos sabemos que a educação brasileira tem problemas sérios de qualidade e acesso. Sabemos também que têm havido melhoras importantes desde a década de 90.

A dúvida é se essas melhoras caracterizam um avanço contínuo que, em poucos anos, nos colocará no mesmo nível dos países mais desenvolvidos ou se estamos diante de um impasse. Se há um "teto de vidro" que temos dificuldade em enxergar, mas que nos impede de avançar com a velocidade e a qualidade que precisamos, fazendo uso adequado dos recursos disponíveis.

Algumas pequenas melhoras que parecem ter surgido mais recentemente nas avaliações são pequenas demais, dispersas e sujeitas a questionamentos estatísticos, e não justificam o tom de euforia eleitoral que o Ministério da Educação tem adotado. O Congresso tem discutido, nos últimos meses, o texto do que seria um novo Plano Nacional de Educação.

Uma das questões que mais se discute é se o Brasil, cujo setor público já gasta cerca de 5% do PIB em educação, deveria aumentar essa proporção para 7%, como propõe o governo, ou para 10%, como tem sido proposto pelas inúmeras organizações sociais, corporações e movimentos sociais ligados à educação.

Mais dinheiro é sempre bom, permitindo pagar melhor aos professores, expandir a educação de tempo completo, melhorar as instalações das escolas etc. Mas duas questões fundamentais têm sido deixadas de fora nesta discussão.

A primeira é de onde vai sair esse dinheiro adicional, dada a resistência da sociedade a transferir cada vez mais impostos para o governo. A segunda questão que não está sendo discutida é que mais dinheiro nem sempre significa melhores resultados.

A conclusão não é que não devemos investir mais em educação, mas que esses investimentos só devem ser feitos quando associados a projetos com objetivos bem definidos e cujos resultados possam ser avaliados com clareza e precisão.

Aumentar simplesmente os gastos, sem saber em que e como eles serão aplicados, pode levar somente a um aumento no custo da burocracia pública da educação, sem que os estudantes e a população se beneficiem dos resultados.

As reformas necessárias na educação brasileira incluem uma mudança profunda nos sistemas de formação e contratação de professores, fazendo com que eles sejam capacitados para lidar com as necessidades educativas dos estudantes e sejam estimulados e recompensados pelo seu desempenho.

Incluem também a criação de um currículo mínimo obrigatório para o ensino de português, matemática e ciências naturais e humanas para a educação fundamental.

Precisamos de uma transformação profunda no ensino médio, abrindo caminho para opções e alternativas de formação conforme as condições de aprendizagem e os interesses dos estudantes.

Além disso, as reformas devem contemplar o desenvolvimento de sistemas de avaliação com requerimentos claros de desempenho para os diferentes níveis escolares e tipos de formação, associados aos currículos obrigatórios.

Por fim, incluem transformações profundas na forma como as redes de educação pública estão organizadas, tornando as escolas mais autônomas para buscar seus caminhos e responsáveis pelo seu desempenho, recebendo para isso o apoio e o estímulo de que necessitam.

Nada disso é fácil: são caminhos novos que o Brasil ainda não conhece e que serão discutidos no seminário promovido hoje pelo Instituto Teotônio Vilela, no Rio. Mas o país precisa começar a aprender, em vez de continuar tentando fazer sempre mais do mesmo de sempre, que é o que tem sido a prática dominante até agora.

SIMON SCHWARTZMAN é sociólogo e pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade. Foi presidente do IBGE.