terça-feira, 28 de agosto de 2012

A constituição da república tem um buraco [Graciliano Ramos]


A Constituição da República tem um buraco. É possível que tenha muitos, mas sou pouco exigente e satisfaço-me com referir-me a um só. Possuímos, segundo dizem os entendidos, três poderes – o executivo, que é o dono da casa, o legislativo e o judiciário, domésticos, moços de recados, gente assalariada para o patrão fazer figura e deitar empáfia diante das visitas. Resta ainda um quarto poder, coisa vaga, imponderável mas que é tacitamente considerado o sumário dos outros três.

É aí que o carro topa. Há no Brasil um funcionário de atribuições indeterminadas, mas ilimitadas.

Aí está o rombo na constituição, rombo a ser preenchido quando ela for revista, metendo-se nele a figura interessante do chefe político, que é a única força de verdade. O resto é lorota.

Em escala descendente, a começar pelo Catete, onde pontifica o chefe açu, e a terminar no último lugarejo do sertão, com um caudilho, mirim, isto é um país a regurgitar de mandões de todos os matizes e feitios.

Está aqui um deputado que é um poço de manha, papagueador quando parola com o eleitorado, mudo na Câmara, gênero peru; ali está um presidente de estado que outra coisa não tem feito senão apregoar pelas trombetas oficiais as maravilhas que ninguém vê, mas que ele teve o louvável intuito de realizar; temos acolá um advogado ventoinha, equilibrista emérito, camaleão legítimo; vem depois o comerciante voraz, enriquecido com os favores clandestinos, negociatas escusas e contrabandos; mais distante, avulta a majestade rotunda do industrial insatisfeito, empanturrado pelas propinas que a guerra lhe meteu no bucho.

Todos eles são mais ou menos chefes. Não se sabe bem do que, mas certo é que o são. Graúdos, risonhos, nutridos, polidos, escovados, envernizados, lá estão inchando, inchando. São os grossos batráquios da lagoa republicana. Muitos, menos volumosos, coaxam pelos cantos, chefinhos incolores, numerosos, em chusma, minúsculas pererecas em poças d’água.

São os donos de todos os municípios destes remotos rincões que o estrangeiro ignora, que as cidades do litoral conhecem vagamente, através dos despachos da Agência Americana.

Mandatários do governo, forjadores de eleições, mais ou menos coronéis, caciques em miniatura, têm frequentemente, para infundir respeito, uma espada da Guarda Nacional, um boné sebento, um lenço de tabaco e um par de socos.

Possuem um factótum, pau para toda obra, secretário particular e muitas coisas mais, criatura que se especializa no mister de enviar ao presidente ou governador do estado chavões telegráficos de congratulação pelo aniversário de gloriosas potocas que enchem nossa história.

São, a um tempo, intendentes ou prefeitos, juízes, promotores, advogados e jurados, conselheiros municipais, comissários de polícia e inspetores de quarteirão.

Realizam a pluralidade na unidade!

E ainda há quem duvide do mistério da Santíssima Trindade.

Parece-me claro que uma pergunta aqui se impõe: para que tanta gente de palha a ocupar cargos em penca, a roer sinecuras polpudas nesta confederação cinematográfica, em que o poder é a coisa mais centralizada deste mundo, se, desde o tempo dos capitães-mores, um homem só pode administrar, legislar e julgar a contento das populações sertanejas?

Ponha-se, pois, o chefe político no galarim e mande-se às favas o resto.

Metam-no, honestamente, em letra de fôrma.

Entre ele, triunfante, com armas e bagagens, em nosso magno estatuto.

Peguemos o chefe político, agitemo-lo no ar e berremos o estribilho com que a imprensa, há tempos, nos anda a amolar – A constituição da república precisa de uma revisão.


Publicado no "Jornal de Alagoas", em março de 1915.