domingo, 9 de dezembro de 2012

O mundo como fábula, como perversidade e como possibilidade [Milton Santos]


Vivemos num mundo confuso e confusamente percebido. Haveria nisto um paradoxo pedindo uma explicação? De um lado, é abusivamente mencionado o extraordinário progresso das ciências e das técnicas, das quais um dos frutos são os novos materiais artificiais que autorizam a precisão e a intencionalidade. De outro lado, há também referência obrigatória à aceleração contemporânea e todas as vertigens que cria, a começar pela própria velocidade. Todos esses, porém, são dados de um mundo físico fabricado pelo homem, cuja utilização, aliás, permite que o mundo se torne esse mundo confuso e confusamente recebido. Explicações mecanicistas são, todavia, insuficientes. É a maneira como, sobre essa base material, se produz a história humana que é a verdadeira responsável pela criação da torre de babel em que vive a nossa era globalizada. Quando tudo permite imaginar que se tornou possível a criação de um mundo veraz, o que é imposto aos espíritos é um mundo de fabulações, que se aproveita do alargamento de todos os contextos (M. Santos, "A natureza do espaço", 1996) para consagrar um discurso único. Seus fundamentos são a informação e o seu império, que encontram alicerce na produção de imagens e do imaginário, e se põem ao serviço do império do dinheiro, fundado este na economização e na monetarização da vida social e da vida pessoal.

Com essa grande mudança na história, tornamo-nos capazes, seja onde for, de ter conhecimento do que é o acontecer do outro. Nunca houve antes essa possibilidade oferecida pela técnica, a nossa geração ter em mãos o conhecimento instantâneo do acontecer do outro. Essa é a grande novidade, o que estamos chamando de unicidade do tempo ou convergência dos momentos. A aceleração da história, que o fim do século XX testemunha, vem em grande parte disto. Mas a informação instantânea e globalizada por enquanto não é generalizada e veraz porque atualmente intermediada pelas grandes empresas de informação.

E quem são os atores do tempo real? Somos todos nós? Esta pergunta é um imperativo para que possamos melhor compreender nossa época. A ideologia de um mundo só e da aldeia global considera o tempo real como um patrimônio coletivo da humanidade, mas ainda estamos longe desse ideal, todavia alcançável.

A história é comandada pelos grandes atores desse tempo real, que são, ao mesmo tempo, os donos da velocidade e os autores do discurso ideológico. Os homens não são igualmente atores desse tempo real. Fisicamente, isto é, potencialmente, ele existe para todos. Mas efetivamente, isto é, socialmente, ele é excludente e assegura exclusividade, ou, pelo menos, privilégios de uso.



Apesar de ter se graduado em Direito, Milton Santos destacou-se por seus trabalhos em diversas áreas da geografia, em especial nos estudos de urbanização do Terceiro Mundo. Foi um dos grandes nomes da renovação da geografia no Brasil ocorrida na década de 1970. Escreveu os livros: O meio técnico-científico e a redefinição da urbanização brasileira, O espaço do cidadão, Técnica, espaço, tempo, Por uma outra globalização, entre outros.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Interessere [Décio Pignatari]



Na vida interessa o que não é vida
Na morte interessa o que não é morte
Na arte interessa o que não é arte
Na ciência interessa o que não é ciência
Na prosa interessa o que não é prosa
Na poesia interessa o que não é poesia
Na pedra interessa o que não é pedra
No corpo interessa o que não é corpo
Na alma interessa o que não é alma
Na história interessa o que não é história
Na natureza interessa o que não é natureza
No sexo interessa o que não é sexo
(: o amor que, de resto, pode ser abominável)
No homem interessa o que não é homem
Na mulher interessa o que não é mulher
No animal interessa o que não é animal
Na arquitetura interessa o que não é arquitetura
Na flor interessa o que não é flor
Em Joyce interessa o que não é Joyce
No concretismo interessa o que não é concretismo
No paradigma interessa o que não é paradigma
No sintagma interessa o que não é sintagma
Em tudo interessa o que não é tudo
No signo interessa o que não é signo
Em nada interessa o que não é nada.


Além de poesia, Pignatari (1927-2012) escreveu romance, peça de teatro e foi tradutor, professor e estudioso de semiótica. Sua obra poética está reunida em “Poesia pois é poesia” (1977), e lançou, em 2009, o livro "Bili com limão verde na mão". Entre as obras de maior relevância do poeta estão "Informação, linguagem, comunicação" (1968), "Contracomunicação" (1972), "Semiótica e literatura" (1974) e "O rosto da memória" (1988). Como tradutor, Pignatari é responsável por obras de nomes como Dante Alighieri, Goethe, Shakespeare e Marshall McLuhan.